Agora tu, Calíope, me ensina... Poderia ter dito Clio à musa sua irmã... Porque Calíope pode “ensinar” à Clio, e vice-versa, num tempo como o nosso, de confluente diálogo entre as diferentes disciplinas ou campos do saber.
Sandra Jatahy Pesavento
No tempo dos Deuses, na antiga Grécia, o Monte Parnaso era a morada das Musas, filhas de Zeus com Mnemósine, a Memória. Ao todo eram nove Deusas-irmãs que tinham o dom de dar existência para o que cantavam, sendo que, cada uma inspirava uma das artes.
O Mouséion era a casa onde Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Terpsícore e Urânia dançavam e cantavam o passado, o presente e o futuro. Mas uma entre as nove vai se destacar.
Carregando o estilete da escrita e a trombeta da fama em mãos, Clio, a “proclamadora” musa da História, vem nos fazer crer que era uma filha muito querida, pelo fato de partilhar juntamente com sua mãe o passado e a mesma tarefa de fazer lembrar. Há quem pense até que Clio supera Mnemósine, sendo que fixava em narrativa, aquilo o que cantava, com o seu estilete e com a sua trombeta conferia notoriedade ao que celebrava (Pesavento 2005, p.7).
A mais velha das Musas era Calíope “a de bela voz”, que é a musa da epopéia, da poesia épica e da eloqüência. Com quem Clio tinha muita afinidade. E é explorando essa afinidade que podemos estabelecer conexões entre a História de Clio e a Literatura de Calíope.
Porém devemos ter clareza que elas não se confundem. Pois História e Literatura, segundo Pesavento (2006) correspondem a narrativas que explicam o real e que se renovam no tempo e no espaço, mas que possuem um traço de permanência ancestral: os homens, desde sempre, através da linguagem, expressaram o mundo do visto e do não visto, com diferentes formas: a oralidade, a escrita, a imagem e a música.
O que pretendo é justamente discutir o diálogo entre essas duas áreas do conhecimento que possuem características próprias. Porém, é necessário assumir uma postura que dilua as fronteiras, para poder ser feita uma aproximação entre as áreas de Clio e Calíope. Colocando em pauta relações de aproximação e distanciamento.
O real. É um fator que as aproxima. Porque tanto História como a Literatura são narrativas que tem como referência o real, podendo ele ser confirmado ou negado e até mesmo, sobre ele ser construída uma nova versão que pode ultrapassá-lo.
Cabe-nos lembrar que assim como as Musas participaram da construção do mundo, pois criavam aquilo que cantavam. História e Literatura são formas de “dizer” a realidade, na medida que partilham da recriação do real, através de um mundo construído de palavras e imagens (Pesavento, 2000).
Já para distanciar, Clio e Calíope, vem a noção de que a Literatura é o discurso sobre o que poderia ter acontecido, ficção e a História fica como a narrativa de fatos verídicos. Pesavento (2006) nos diz que discutindo esse diálogo é como percorrer pelas trilhas do imaginário e que os historiadores que hoje trabalham com ele discutem não só o uso da Literatura como fonte ao passado, como o próprio caráter da História como uma forma de literatura.
Ou seja, tomam o que não aconteceu para recuperar o acontecido e vêem a História como uma narrativa composta de ficção. Pesavento (2005 p. 112) coloca que:
Tais questões, abertas por vezes de forma iconoclasta, fora da História (caso de Roland Barthes) ou dentro dela (no exemplo de Hayden White), vieram encontrar uma abordagem epistemológica extremamente fina através da hermenêutica instaurada por Paul Ricoeur. A reação não se fez esperar por meio de historiadores como Roger Chartier, Krzysztof Pomian ou Philippe Boutry. Mesmo aceitando a ficção no terreno da História e a construção narrativa do passado como uma versão verossímil do acontecido, recusavam abolir as fronteiras entre História e Literatura.
O real, na relação com o historiador é diferente, como o método empregado também é. E mesmo fazendo estas aproximações e distanciamentos, Pesavento (2005, p.112) diz que ao colocar-se em diálogo com esses novos parceiros, o historiador, precisa se familiarizar com novas questões oriundas desses novos campos. Como as que colocam a História e a Literatura como leituras possíveis de uma recriação imaginária do real. (Leenhardt & Pesavento, 1998) o que aproximaria perigosamente o historiador do escritor de ficção.
Essa aproximação ou distanciamento, entre as duas áreas, é uma história que tem raízes nas idéias de Aristóteles. Pois esse filósofo em sua obra Poética estabelece uma antítese entre História e Literatura, vindo a criar vários obstáculos entre as duas, quase que intransponíveis (Mendonça, 1995).
Para Aristóteles, por tratar de verdades possíveis ou desejáveis, a poesia é mais filosofia, elevação e universalidade. E a História trataria de verdades acontecidas e particulares, sendo não universais.
O que pode ser interpretado segundo o pensamento do filósofo, é que esses dois campos do saber diferem na abordagem que dão aos acontecimentos ocorridos. Ficando mais evidente esse pensamento quando Aristóteles (In: Os Pensadores, 1973, p. 443-471) aborda que:
(...) não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso e prosa (...), diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por referir-se ao universal entendo eu atribuir a um individuo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens. Outra não é a finalidade da poesia, embora dê nomes particulares aos indivíduos; o particular é o que Alcibíades fez ou que lhe aconteceu.
Então, houve a construção de manifestações contrárias à inteligência: a concepção de arte e história, ficção e verdade. O que com os tempos modernos e o crescimento do racionalismo, vai culminar na acentuada contraposição desses termos.
Antonio Celso Ferreira (2000) nos fala que a poesia, arte e a ficção seriam desqualificadas como modos do conhecimento do real, passando a ser de um mundo fantasioso para o artista ou metafísico para o intelectual.
Em contraposição, temos as ciências da objetividade, racionalidade que cumprem funções úteis para a sociedade, solidificando a separação entre arte e ciência. E segundo Costa Lima (1984, p.31) houve “um verdadeiro veto ao ficcional, um controle ao imaginário, decorrente do racionalismo, pôde ser assistido desde meados do século XVIII, atravessando os mais variados discursos, até mesmo os artísticos”.
Com o Romantismo procurou-se valorizar a literatura ficcional, manifestando uma aversão para a ciência. E no século XX, por mais que abandonados esses ideais românticos, com o científico, buscou-se assegurar o literário e o estético com singularidade diante das ciências.
E mais uma vez as idéias aristotélicas entrariam em cena para demarcar posições. O verossímil para Calíope e o verdadeiro para Clio. Aquino (1999, p.16) coloca para a Literatura o verossímil como a impressão de verdade, não necessariamente falsa, que se inclui no espaço ficcional e para a História o verdadeiro no sentido da representação do acontecimento particular.
Com isso, se propagou no século XIX e até algumas décadas do século XX, a noção de campos distintos para História e Literatura. E a História acabou por se autodenominar como a única possibilidade de registro do passado, não sendo reconhecida tal capacidade para a Literatura.
A aproximação se dá através da crise de paradigmas de interpretação do real na passagem do século XX para o XXI. Pesavento (1995) coloca que o debate sobre a história e suas conexões com os gêneros literários já estava colocado desde a década de setenta do século passado.
Dentro e respaldada por uma prática interdisciplinar essa abordagem vem crescendo e interrogando as fronteiras instituídas do conhecimento. Encontrando terreno fértil nos trabalhos com o imaginário e no embasamento da História Cultural ou da Nova História Cultural de Lynn Hunt (1992), onde discute a expansão das fronteiras da História, procurado respostas à pergunta: como a narrativa histórica representa a realidade?
O texto literário, na tentativa de contribuir para a resposta da questão, traz consigo a expressão ou sintoma de formas de pensar e agir. Ricoeur (1983/5) nos coloca diante da possibilidade de pensar a Literatura na relação da História como um inegável e recorrente testemunho de seu tempo. Pois utilizando as palavras de Pesavento (2006) “a Literatura registra a vida”. Sendo esta uma das metas mais buscadas nos domínios da História Cultural e esta, a partir de seus pressupostos e preocupações, proporciona uma abertura dos campos de pesquisa para a utilização de novas fontes e objetos, entre as quais se encontra o texto literário.
Assim nos diálogos entre Clio e Calíope, evidência-se que a Literatura é uma fonte para o historiador, de certa forma privilegiada, por lhe dar acesso ao mundo do imaginário. Coisa que outras fontes não lhe dariam, porque a Literatura é narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica.
Conforme Pesavento (2006) a coerência de sentido que o texto literário possui é o fundamento necessário para que o olhar do historiador se guie para outras fontes e nelas enxergue o que antes não havia visto. Nesta dimensão, a Literatura inaugura um algo a mais como possibilidade de conhecimento de mundo.
Gosto das palavras de Pesavento (2005, p.113), ao expressar que:
Neste cruzamento que se estabelece entre a História e a Literatura, o historiador se vale do texto literário não mais como uma ilustração do contexto em estudo, como um dado a mais, para compor uma paisagem dada. O texto literário lhe vale como porta de entrada às sensibilidades de um outro tempo, justo como aquela fonte privilegiada que pode acessar elementos do passado que outros documentos não proporcionam.
Falar sobre as relações entre História e Literatura dá muito que questionar. Porém o que quero deixar claro é a possibilidade de trabalho unido e interdisciplinar entre essas duas construções de mundo, porque tanto Clio quanto Calíope podem e devem ser trabalhadas juntas.
Dentro deste trabalho monográfico não pretendo prolongar o debate sobre as relações entre os dois campos do saber, mas sim levantar uma problemática do uso para a resolução de um questionamento que serve de objeto de estudo comum.
Ao dialogarem Clio e Calíope se enriquecem e abrem as portas para novas abordagens e questionamentos. As duas narrativas se empenham no esforço de registrar a vida, re-apresentar o real e, mesmo que suas estratégias de argumentação possam ser diferentes, um diálogo ou um cruzamento de olhares entre os domínios das duas Musas pode ser muito gratificante, como também, bastante esclarecedor (Pesavento, 2000, p. 8).
Tanto a Literatura, quanto a História contribuem para a atribuição de uma identidade, social e individual, provocando modelos de comportamento, expressando as forças sociais e do poder, possuem e criam condições para a coesão social.
Na contemporaneidade, busca-se mais do que nunca, a quebra das fronteiras entre os campos do saber ou áreas do conhecimento. Procura-se uma prática interdisciplinar que possibilite a resolução de novos problemas, os quais necessitam de diversos olhares. E, que, na maioria das vezes são oriundos de problematizações de diferentes campos que se encontram na busca de respostas.
Assim, com esse novo olhar, Clio e Calíope se encontram para trocarem idéias e experiências. Partilharem juntas como Musas-irmãs de novos questionamentos na busca de procurar resolvê-los.
Nesse encontro onde acontece o diálogo, há a construção. Construção essa de conhecimentos, valores, paisagens, costumes, linguagens, mentalidades, padrões, paradigmas e visões de mundo. Que contribuem para a descoberta de novos mundos, onde as personagens que os compõem podem ser tanto os indivíduos pelos quais nos esbarramos diariamente ou aqueles que existem e habitam nossa imaginação, que são reflexos do tempo e do espaço em que vivemos, e que estão presentes nos constantes diálogos entre Clio e Calíope.